Resenha do livro Art and cosmotechnics, de Yuk Hui

Guilherme Kujawski
14 min readNov 14, 2022

--

O preâmbulo do texto toma como inspiração a aurora da filosofia ocidental. A tragédia grega é uma forma de techné, no sentido de promover a resolução da contradição entre destino (necessidade) e liberdade (contingência). É uma formulação do logos em harmonia com a epistêmê. Recordamos, por via de Stiegler, que a razão sempre esteve associada ao conhecimento, na Grécia antiga. A separação ocorreu quando os sofistas raptaram a noção de logos para aplicá-la à retórica, como técnica de convencimento, e não como uma ponte ao conhecimento, não como técnica de conhecimento. “A retórica (que é a ciência dos efeitos da linguagem) é enquanto tal a ciência suprema das influências” (Coccia, A vida sensível, p. 72). A resolução da contradição trágica tinha como base a técnica da razão, a tecno-logia.

Hui mostra no livro que o pensamento orgânico, fruto do juízo reflexivo (não teórico), se auto-determina, não é determinado por categorias a priori — mas, ao mesmo tempo, se abre a contingências. É como o vivente de Gordon Pask: mantém uma circularidade em seu fechamento organizacional, mas é informacionalmente aberto aos estímulos e percepções de origem externa. Enquanto o orgânico seria a chave para se resolver a contradição trágica entre necessidade e contingência — ou entre a liberdade e o destino (do herói) — o organo-mecânico cibernético, atualização do juízo reflexivo, resolve o binarismo composto por mecanismos e vitalismos.

A meta do livro é propor uma cosmotécnica. A cerimônia do chá, por exemplo, se mostra como paradigma de li, um ritual que unifica cosmos e moral, céu e terra. Curioso que li de chanoyu (o ritual de chá no Japão) acessa o metafísico cósmico por meio de utensílios (espátula, concha de bambu, batedor) e procedimentos formais (cf. Every Day a Good Day, 2018, dirigido por Tatsushi Ōmori), ou, técnicas e gestos corporais. Em nota lateral, lembramos que o historiador Ssu-ma Ch’ien registra que os rituais da China antiga eram tão complexos que o próprio imperador Han Kao-tsu (247 a.C.) solicitou aos seus sacerdotes uma combinação de rituais cerimoniais que “não fossem tão difíceis”. Li religa, de certo modo, práticas ritualísticas e teorias contemplativas.

Uma das premissas mais instigantes do livro é inverter o vetor arte-tecnologia: ao invés de pensar como a tecnologia pode modificar os rumos da arte, considera como a arte pode reabilitar a vida tecnológica, ou como a arte pode contribuir com a nossa condição contemporânea, afastando-nos da Gestell. Hui menciona “diferentes experiências estéticas”, o que nos faz perguntar: todas elas estão relacionadas apenas com “variedades de experiências artísticas”? Hui responde: “Essa questão, é claro, se aplica à arte, mas também ao pensamento em sua totalidade”. Daí a inclusão de uma abordagem epistemológica e/ou epistêmica, “a condição sensível sob a qual o conhecimento é produzido”. É preciso questionar qual a relação entre a condição sentimental sob a qual é produzido o conhecimento de uma época com as estuturas de sentimento de Raymond Williams, antiformas emergentes, visíveis talvez como alterações do consenso ou mesmo “perturbações” na ordem social vigente.

Não seria o caso de extremar a tecnologia nos limites do incremento sensorial, fornecendo, por exemplo, a audição ciborgue da mulher biônica. Trata-se de como usar a tecnologia para transcender os sentidos, ou melhor, transcender os cinco sentidos e trazer tal experiência ao campo da tecnologia. Nesse caso, transcender os sentidos seria entrar no campo da formação de conhecimento. Tornar o invisível, visível. Ou relembrar a questão do Ser, perdida nos escaninhos da filosofia da tecnologia. É preciso apostar na educação da sensibilidade, a qual permite ao sujeito ser capaz de tornar sensível (perceptível?) a relação entre cosmos e moral.

É preciso esclarecer de antemão a conotação que Hui dá à palavra cosmos. Não se trata evidentemente do cosmismo, principalmente o de matiz russa, esotérica, mas de cosmologias locais. Também não tem nada a ver com a física astral de exploração de espaços interiores, a inversão do cosmismo que busca o supra-humano conquistador de planetas no espaço sideral (Musk, Putin et caterva). A cosmologia de Hui toca mais no genius loci, no espaço vital da consciência (basho) e no indivíduo criador de mundos localizados (porém abertos).

O pensamento ocidental parte do princípio de que a natureza é avassaladora, e que o choque provocado por tal condição pode ser transcendido através do sublime. O sublime provoca, portanto, um duplo sentimento: primeiro, o de choque e, em seguida, o reconhecimento da liberdade, ou a liberdade de o sujeito reconhecer a entrada de uma informação externa não cognoscível, mas digna de respeito. O sublime é trágico, porque resolve a contradição entre destino e liberdade com o sacrifício do herói. O pensamento oriental, por outro lado, não se reconhece no sublime, porque há uma suavidade na natureza, uma complementaridade e continuidade entre pólos opostos subentendidos pela lógica de xuan, a lógica da recursividade (ou do juízo reflexivo).

A tecnologia moderna deve ser criticada, principalmente sob a forma de Gestell (computação planetária), o paroxismo da metafísica que nos fez chegar a uma ameaça existencial. Mas, ao mesmo tempo, devemos reconhecer que, se desfeito o seu domínio infra e superestruturais, a tecnologia pode recuperar seu caráter de condição de existência da filosofia. A arte, associada novamente à tecnologia, é um modo de pensamento situado entre a filosofia e a engenharia. A missão da arte, contudo, não é aumentar os sentidos (como pregam os arautos da Realidade Aumentada), mas retirar o véu que diariamente recai sobre eles na forma de aparatos digitais que “prometem a singularidade tecnológica ou a explosão de inteligência”. Para tal, faz-se necessário promover uma (re)educação sensorial.

A arte pode, então, se religar à tecnologia, oferecendo a ela uma forma de poiesis, ou o que Heidegger chamava de “dar à luz a alguma coisa” (Hervorbringen). Uma verdadeira arte tecnológica (longe dos modismos da arte digital) é uma arte que se vale de técnicas especiais para revelar algo oculto, ou algo invisível. Em nossa tese de doutorado procuramos demonstrar como uma forma de tecnologia acoplada ao mundo natural poderia recuperar a poiesis da techné original, o ‘trazer à tona’, o fazer com que algo meramente presente torne-se aparente. É também o caminho do controle, não no sentido de dominação, mas de tomar as rédeas de um produto tecnológico que se arvorou “autônomo”, uma contradição de termos, pois a técnica veio da costela do Homem, e o “homem só se torna verdadeiramente livre na medida em que pertence ao reino do destino”. Esse ‘trazer à tona’ não se associa ao ‘descobrir’, isto é, desenterrar (tecnologias de mineração, por exemplo). O modo de atuação de Gestell, segundo o filósofo alemão, é o desafio; é desafiar o mundo natural, tornando-o estoque de reserva para exploração contínua (Hui lembra que Heidegger especificou o estoque como sendo uma reserva energética). A tarefa maior da arte, então, é recuperar o papel autoral da natureza, transformar a sua posição de ‘reserva permanente’ — suprimentos em um depósito, peças de inventário — em guia; de componente a compositora, co-autora.

A expressão “ser dono de seu próprio destino”, traço da estética trágica, adquire novos significados na época da Gestell. O savoir faire tecnológico não tem a ver, por exemplo, com o chamado letramento algorítmico, e estaria mais associado com a liberdade de reparo. Aquele saber fazer é, de fato, aceitar o destino, não da forma conformista do essencialismo tecnológico, mas com uma carga de autonomia, com o sujeito exercendo a liberdade de escolha e ação. Nesse ponto, deve-se ter cautela sobre a questão da autonomia tecnológica, faux pas do essencialismo. A autonomia absoluta é tecnologismo (ou mesmo tecnofetichismo). Por outro lado, deve-se ter cautela com a questão do ‘controle e comunicação’, ou controle total, porque de fato há uma certa organicidade mecanicista na tecnologia da Gestell, quase um vitalismo-mecanicista orientado por uma Teoria Organísmica.

A questão primordial do livro é: Como a questão do Ser (na acepção que Heidegger dá ao termo) pode ser incorporada à tecnologia? Mas não estamos tratando da questão do existir exatamente, porque poderíamos pensar em como a computação planetária está associada à ameaça existencial dos viventes, à sexta extinção em massa, etc. Mas Hui sugere que o Ser, nesse caso, é o não racional, logo, trazer de volta a questão do Ser à tecnologia seria investir em um processo de re-fundação (re-grounding) da verdade (trazer o plano de fundo de volta ao primeiro plano), ou uma ‘recosmicização’ da existência humana, nas palavras de Berque (“recosmicisation de l’existence humaine”).

O resgate do cosmicismo passa pela visão de Hui sobre o cosmos, o qual inclui a localidade, a moral e a imagem. Ele lembra da teoria da forma (ou formação) de Klee, a intermediação do cósmico e a comunidade, um processo não óptico, ou seja, focado na imagem que, segundo Emanuele Coccia, “é um estado, uma maneira de existir das formas”. A imagem seria o pré-individual da forma. É por esse motivo que o filósofo Ivan Illich prefere diferenciar a óptica, ciência que estuda a energia radiante, da “escópica”, ciência que estuda o regime das imagens ao longo de diferentes culturas e épocas (ou história da “opsis”).

A lógica da cibernética não é dualista (resta saber se é monista), mas unificadora. Heidegger acrescentou que o círculo cibernético (observação, mensuração e ação) explica o “autofechamento do mundo tecnológico”, ou o círculo vicioso que se constrói pela falta de um segundo loop, o loop da recursividade. “A futurologia [da Gestell] se baseia no feedback positivo”, diz Hui — e por futurologia aqui, leia-se a capacidade de pensar em camadas causais, sendo a primordial, a causa final.

Há no livro uma retomada reflexiva da questão da localidade, termo que merece maior escrutínio. O cósmico, segundo Hui, seria o local, um espaço delimitado de ação e movimento, mas que não se restringe a noções como propriedade, coordenadas, nacionalidade e identidade. É um núcleo que se amplia, como as marolas de uma pedra jogada em um lago; uma seção de orlas concêntricas. É, portanto, um sistema escalar. Emana algo do que Heidegger chamava de Ort, ou um sítio situado, um terreno estimado. Remete ao som das águas, à sinfonia caudalosa dos rápidos, tão bem registrada no filme El Botón de Nácar (2015), de Patricio Guzmán.

Mas a noção de local por via de cosmologias seria o suficiente para contrabalançar o protagonismo da computação planetária? Correríamos o risco de imprimir uma tarja tradicionalista na renovação cosmológica, por exemplo, a cosmologia dos povos tradicionais. Um risco imunológico: o outro diferente do mesmo. Na tentativa de propor uma nova origem para a metafísica ocidental, valorizando o “trazer à tona” da poiesis artística dentro da arena da tecnologia moderna, estaríamos promovendo uma crítica frágil aos stacks da Gestell. É preciso em primeiro lugar, segundo Hui, resolver a oposição por meio de um pensamento trágico (ou tragista, no neologismo de Hui): o confronto é substituído pelo debate (contradição) da tragédia, ou seja, o destino convive com liberdade. A lógica ‘tragista’, análoga à lógica taoista, é fundada em um tipo de reciprocidade de elementos aparentemente opostos. Hui: “Essa reciprocidade precisa ser explorada como uma lógica recursiva, fundada no que chamo de continuidade e unidade oposicional.” A oposição da lógica trágica, como se vê, é entre a necessidade do herói e a necessidade do destino, ou entre necessidade e contingência. O desafio, portanto, não é criar tecnologias mais ecológicas (mesmo porque o custo ecológico da transição seria alto demais), mas pensar a tecnologia em sua diversidade (tecnodiversidade, na expressão de Hui), sem perder de vista a tarefa de reconciliar o antagonismo entre natureza e tecnologia.

No paper Induction versus Deduction in Science, Computing, Literature and Art, Mark Burgin sugere ser a arte fruto de um processo indutivo, por deixar em aberto as possíveis interpretações: os cisnes negros ainda não vislumbrados. Mas, para Simondon, a intuição, componente principal do processo de produção artística, não é nem indutiva ou dedutiva; nem a priori ou a posteriori, mas a praesenti, ou seja, a possibilidade de perceber uma gênese. Isso vai de encontro com as ideias de Klee, artista mencionado no livro, o qual propôs não uma Teoria de Forma, mas uma Teoria de Formação. Para Klee, o princípio de todas as formas é representado por uma linha, a extensão de um ponto, uma linha sobre o abismo do caos. É possível que o fascínio de Heidegger por esse artista tinha como explicação exatamente esse apontamento ao Ser, ao mundo supranumerário das imagens.

Em certa altura do livro Hui estabelece uma discussão sobre como a percepção pode se adaptar a várias ordens de grandeza: científica, sensual, etc. É possível, segundo Hui, apreciar um copo d’água sob o ponto de vista da química e do ‘degustador’. É a sugestão que faço em minha tese de doutorado: a de que a apreciação estética deve começar com o ponto de vista da ciência (narrativa) para daí ativar os sentidos, revelando o inaudito e o ausente (que não é o mesmo que inexistente). Tudo começa com a intenção. Pode ser que este seja um caminho válido para a apreciação de objetos técnicos que almejam a condição de objetos estéticos.

Para os chineses a tradução para ‘forma’ (morphé ou eidos para os gregos) é xing, palavra que é sinônimo de xiang, que significa semelhança (ou, curiosamente, elefante). Ou seja, a forma para os chineses não procura ser essencial, mas tão somente uma indicação (ou índice, na semiótica). Afinal, “toda forma é apenas uma imagem de uma forma original”, nas palavras do arquiteto-escultor do filme The Unknown Craftsman, de Amit Dutta. Xiang é o que é sugerido, não tanto uma pareidolia, mas uma semelhança (melhor seria dizer impressão estética, seguindo Dufrenne/Simondon). Xing é o elemento concreto, transmitido aos sentidos apenas como símile, “porque a experiência … é capaz de existir e viver em outro lugar em relação ao objeto de que é semelhança e em relação ao sujeito a quem ela abre o mundo e a sua verdade” (Coccia, A vida sensível, p. 69). Citando Hui: “Para expressar o xiang de um objeto, deve-se visar à semelhança de xing, mas essa semelhança formal consiste na individualidade básica e tanto a individualidade básica quanto a semelhança formal vêm da concepção do artista sobre o assunto e se baseiam, em última análise, no trabalho do pincel.”

E o trabalho do pincel do qual Hui fala é o efeito das pinturas em estilo shanshui, um dos temas centrais do livro. Nelas, o artista evita definir com precisão uma forma, devendo “se esforçar por mostrar o xiang, a fim de ativar o ch’i da nuvem”. O artista não deve impor a forma, mas mostrar uma “nebulosidadade”, ou a “representação” (colocar muitas aspas aqui) de corpos naturais em movimento. A lógica de xiang é a da oposição-complementar, ou o que provoca um movimento, o qual, por sua vez, ativa um certo tipo de energia (ch’i). O artista de shanshui refaz o caminho que vai da forma ao fenômeno, e do fenômeno ao seu princípio energético. Interessante fazer o contraponto com a atitude dos poetas do Simbolismo com relação à neblina: “A paisagem do poema de Baudelaire é, de fato, a da cidade mergulhada na neblina. É a tela preferida para os bordadores do tédio.” (Walter Benjamin, Passagens, p. 356). “Os objetos nesta perspectiva são dotados de vida, não precisamente por meio do animismo, mas sim pelo espiritualismo.” (HUI, p. 160).

O telos da pintura em estilo shanshui é “uma finalidade sem finalidade que não pode ser entendida nem como uma redução à figuração nem como a soma de todas as figuras.” Mais adiante, Hui descreve que “a finalidade de cada pincelada é se desfazer para revelar algo além de si mesma e além de seu próprio alcance”. A arte do artista contemporâneo chinês Qiu Shihua, como as suas pinturas mostradas na Vigésima Terceira Bienal de São Paulo, mostra exatamente como o gesto do pincel “desfaz a si mesmo” ao ‘retratar’ o que não se pode retratar (seria xuan o pré-individual?). É como se a individuação do pré-individual tivesse o traço de “desindividuação”, de desfazimento. Nas pinturas de Shihua vê-se o mesmo telos de Dong Yuan (séc. 10), mas nesse último ainda há a presença da linha tentando contornar o incontornável. O fundo dá acesso ao abismo, mas ainda há o contraste. Em Shihua, principalmente na série White Field, o campo desaparece, como se fosse o resgistro do gesto que o desfaz. No estilo shanshui, importante notar, a semelhança da forma prevalece sobre o substrato da forma. Pode-se dizer que essa arte não é figurativa de alta-fidelidade, mas figurativa por analogia, porque está mais associada com xiang do que xing (uma tradução não muito fidedigna de ‘forma’).

Obra de Dong Yuan

Hui retoma o fenômeno da recursividade, explorada no livro Recursivity and contingency, ao apontar o movimento circular de yin e yang, conhecido conceito filosófico que descreve forças de oposição, porém interconectadas. Para ele, aqui não haveria imposição de forma, mas uma gênese. Há uma inadequação no sistema hilemórfico, porque nele é sugerido que, ao haver a comunhão entre forma e matéria, o produto está acabado. É preciso, de acordo com Simondon, substituir a noção de forma pela de informação, do latim ‘informare’, ou ‘dar uma forma’, ou melhor ‘dando uma forma’, processo de formação. Yin e yang formam uma oposição contínua, a essência da pintura em estilo shanshui. Um outro princípio oposicional é wu e you, o qual tem como analogia a lei da Gestalt de figura e fundo, porque wu é o processo que dá origem à sensação de profundidade e you é o processo que dá origem às aparências. Nota-se que o domínio desses princípios conduzem o artista não a retratar formas definidas, mas facilitar fluxos de energia, concretizando o que os coachers mencionam como “flow” (uma teoria elaborada pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi).

Hui é versado na etimologia. Ensina que a palavra you (sereno) está sempre associada com a palavra yuan (distante). É a raiz, por exemplo, da palavra Yūgen, conceito tradicional na estética japonesa, cuja tradução depende do contexto. Em um sentido profundo, trata-se da beleza misteriosa do universo. Mas pode também significar a reverência de presenciar uma nuvem passar como uma navalha pela lua cheia; ou a névoa da manhã sobre a relva. Energia, coração e mente. Ele recorda que a perspectiva renascentista é inexistente nesse modo de arte, porque a perspectiva do estilo shanshui é orientada por yuan, a distância profunda avessa ao ponto de fuga. Considerando que xuan é o resultado da união entre wu e you (nota-se a inspiração dialética), então podemos dizer que xuan é a ‘função’ que interrompe o loop infinito da recursividade de yin e yang. Uma hipótese interessante é associar as cenas das pinturas shanshui com os “pontos-chave” de Simondon, a união entre o mundo natural e o artificial.

Em resumo: a proposta de Hui, nessa obra, é como a arte pode transformar a tecnologia; e não como a tecnologia pode adicionar conteúdos à arte. É uma inversão na qual usa como parâmetro a lógica taoista e a lógica cibernética, a qual resolveu a oposição entre mecanicismo e organicismo. Hoje fala-se muito de como a IA pode produzir arte. É uma pergunta fútil, considerando a dependência das IAs de redes neurais, ou modelos de representação. Hui: “Uma representação exige uma descrição do fenômeno de acordo com uma ordem de grandeza específica; por exemplo, uma representação visual consiste em formas, cores e perspectivas. Uma descrição não representativa explora diferentes ordens de grandeza; por exemplo, o mesmo objeto pode ser interpretado como um mapa de intensidades ou uma rede de sinais que pode se atualizar dinamicamente”. Uma esperança nessa direção é o chip NeuRRAM que, diferente da memória digital binária das redes conexionistas, pode armazenar inúmeros valores ao longo de uma faixa totalmente contínua.

Tal lógica da recursividade assemelha-se à intuição intelectual de Kant, a qual serviu de fundamento à filosofia de Mou Zongsan, um dos filósofos mencionados no livro. Ele tinha fascínio com uma forma de intuição que pudesse ser racionalizada, mas não conceitualizada. Se a intuição dos sentidos capta fenômenos e a intuição intelectual (transcendental) capta o noumeno, logo a intuição intelectual captaria o que não se pode conceitualizar. É possível comparar a postura de Zongsan com as “relações intencionais” de Robert Musil, sistema de referências racionais que os conceitos claros do entendimento imprimem às sensações, intuições, afetos e sentimentos. E também com o sublime, que é o fracasso do entendimento e da imaginação em subsumir dados sensíveis em conceito. É uma espécie de epistemologia do Incognoscível, que, para Simondon, tinha a ver com a margem de indeterminação das máquinas contra a tendência de automação. É também o veículo de basho, que não se pode traduzir por khôra (Platão) ou topos (Aristóteles); é o continente de um conteúdo especial: o verdadeiro Nada. Shanshui é uma espécie de recipiente de recipientes, um vaso para conter o infinito — e não um metaverso vazio.

Texto produzido por meio de ‘litnotes’ com a técnica Zettelkasten. Pretendemos torná-lo um Evergreen, ou um texto em constante processo de podadura.

--

--

Guilherme Kujawski
Guilherme Kujawski

Written by Guilherme Kujawski

Prospective designer & folklore trickster & fungi computer enthusiast. More: kujawski.blogspot.com

No responses yet